quarta-feira, 14 de julho de 2010

Paulo Moura e Yamandu Costa - El Negro Del Blanco



É estranho e motivador um grande músico morrer. Estranho, claro, pela falta que sabemos que sentiremos do artista que tanto nos influenciou. Motivador por que toda sua produção será olhada com outros olhos, com diferentes sensações ao saber que aquilo é tudo: não haverá o novo, somente a cópia. Me sinto assim desde ontem à noite, quando soube que o clarinetista Paulo Moura havia morrido de linfoma horas antes. Não foi uma morte qualquer de um músico que não conhecia. Tudo graças ao álbum El Negro Del Blanco (Biscoito Fino, 2004), que Moura gravou ao lado do violonista Yamandu Costa, um dos instrumentistas mais significantes na minha formação musical.

Na epóca do seu lançamento, adquiri uma cópia assim que o vi na prateleira e nunca me arrependi. Adimito, o comprei pelo som do Yamandu, que tanto admiro. O fato de Moura estar lá era um detalhe. Ouvir faixa após faixa, sem pausas e sem interrupções é parte do processo de cada trabalho que encontro, porém este foi mais longe. Ao contemplar o som encorpado de Yamandu encontrei o contraponto harmônico de Moura, um bálsamo de beleza em cada passagem.

Toda a ideologia do disco vêm da fusão das vertentes latino-americanas do violão de Costa com a brasilidade presente na clarineta de Moura. Uma virtuosidade e várias melodias que existem lado a lado e pouco são exploradas juntas por não serem 'naturalmente compatíveis'. Ambos instrumentistas já haviam entendido essa possibilidade simplesmente por tocarem juntos em sarais Rio de Janeiro afora. A idéia de gravar tais arranjos informais veio da esposa de Paulo, Halina Grynberg, ao perceber tamanha afinidade no som deles. Com a escolha óbvia de temas que vão do cancioneiro cubano ao chorinho carioca, a mistura nos faz lembrar que Halina teve uma ótima sugestão.

Na faixa-título, composta pelos dois, as cadências não dão limite aos improvisos e pequenas modificações possíveis. Através de cada rapidez de escalas e voltas relaxantes ao começo a combinação de timbres encanta. Com surpresa e perfeita junção, o medley Um Chorinho em Aldeia/Na Glória mostra que a velocidade não é inimiga de boas melodias. (Ambas se tornaram conhecidas através das orquestras populares que tocavam nos bailes por volta da metade do século). Sem dúvida a agilidade dificulta a compreensão numa primeira audição, porém o maravilhamento que resulta dali é a surpresa de duas peças parecerem tão fundidas a ponto de não se largarem mais. O fôlego de Moura é bastante resistente, acredite.

As próximas três interprtações são de origem latina. Duerme Negrito tem a qualidade das canções de ninar em espanhol que suavizam o ambiente e acalmam os brutos, enquanto La Paloma compartilha a sensação de sonolência que milhões de trabalhadores procuram após o almoço. Inclusive, esta habanera foi composta no século XIX e é considerada a primeira habanera. Em seguida chega a veloz Valsa Venezuelana, a prova de que Yamandu realmente toca com virtuosismo e vigor únicos. Aqui Moura fica só no acompanhamento melódico, algo simples e dentro do compasso. Também é nessa estrutura que percebemos a força resultante entre o leve e o pesado. Enquanto o violão assume o controle, a clarineta vem só massagear e relembra que por trás de toda complexidade há o básico, o trecho primordial que formula tudo. Sem isso não há nada. Como dizia Charles Mingus: "Tornar o simples complicado é fácil. Transformar o difícil em simples, isso sim é criatividade."

Aí voltamos pro choro. Jacob do Bandolim transcendeu quando tornou o fraseado mais limpo e envolvente, o que Paulo refaz em Simplicidade com esta peça-chave no repertório de Jacob. Sem isso, os acordes amistosos do violão de 7 cordas, tão tradicional no chorinho, seriam solitários. A virtude de criar em cima dele são tão grandes que Yamandu vai, volta e completa as pinçadas que Moura dispara (com elegância) todo tempo. Sons de Carrilhões, talvez a composição mais característica do gênero, veio pronta neste álbum. Completa, redonda, encachada, o adjetivo que for: vejo a versão fiel da partitura mais dificil perto dessa, que moleza, que fluidez! Não poderia ser diferente vindo do sopro natural de Moura e a suavidade de Costa (quando ele quer assim).

Porque quando não quer, a pancada vêm forte. Decaríssimo marcha pros lados de Piazzolla, o compositor. Arranjo forte, bem planejado. Lhes digo, nessa o solo vêm de trem e não pára antes de 100km/h! Yamandu brinca de tentar 200 notas por minuto e (só contando uma por uma) acho que chega perto! Moura não é chegado a tantos virtuosismos, como é vísivel até essa altura da audição, porém extravaza com competência e dentro dos padrões, assim como em Carrilhões.

O último representante brasileiro é um medley de canções de Baden Powell, quase um avó do violão moderno no Brasil. Através de pequenos trechos de Samba Triste, Lapinha, Samba da Bênção e Pra Que Chorar, todas colaborações de Powell com Billy Blanco, Paulo César Pinheiro e Viníciius de Moraes (nas duas últimas) respectivamente, o samba predomina entre os mais felizes motivos à contemplação da tristeza sem dificuldades. Grande parte do arranjo é resoluto, compacto, mal se percebe passar de uma harmonia a outra, sem contar que as letras, naqueles que as conhecem, surgem fácil nos lábios.

Voltando aos latinos-americanos, De Camino a La Vereda, do veterano cubano Ibrahim Ferrer, é um frevo canhoto, daqueles que faz a cabeça dançar por dentro e por fora. Algo que não muda ao ouvirmos a contemplativa Gracias A La Vida, grande sucesso de Violeta Parra nos anos 70. Existe nesta pequena obra um calor diferente do apresentado no álbum inteiro. Um misto de tristeza e esperança perpassa as notas e lembra remotamente aquele clima que todo espetáculo da Mercedes Sosa possuia. Não importa quem a toque, a a sensação é a mesma. Elis Regina também atingiu um estágio de sublimação que me deixa arrepiado até a alma. Enfim, Moura/Costa vão evoluindo com entusiasmo exemplares, o que torna esta a minha peça favorita da dupla.

Pra fechar os trabalhos, o clássico de Mariano Mores fecha com toques dramáticos o acento gaúcho SEMPRE presente nas cordas de Yamandu. Taquito Militar é daquelas que todo músico que vive junto da cultura hermana sabe e executa em volta da fogueira. Assim como Asa Branca no nordeste e As Pastorinhas do Rio, Taquito representa uma união de pessoas que vivem perto, compartilham pensamentos e exalam emoções semelhantes, um som puro que os caracteriza. Aqui eles (Paulo e Costa) brincam com os andamentos e  acordes largos e rispidos, algo com desenvoltura passeando pela malandragem.

Imagem retirada do encarte do álbum (Yamandu a esquerda e Moura a direita)

Algo que notei com carinho entre todas as obras foi o final. Todas chegam calmamente, sem aquela pressa de não haver o que dizer. Passagens longas e espaçosas deixam o ouvido ressoando melhor o que já escutou. É com essa nostalgia que não me esqueço de Paulo Moura. Sempre que o ouço a atmosfera  permanece aberta em possibilidades de felicidade e agitação. Nada melhor do que ouví-lo também tocando sax alto e soprano com dedicação e firmeza que pessoas do porte de Cannonball Adderley o escolheram para gravar junto sob o mesmo instrumento. Yamandu Costa também não fica pra trás e surpreende por dar espação às liberdades do companheiro, uma atitude nobre de um recente gênio na presença de um grandioso mestre de suas capacidades.

Para os que curtiram o som, Moura gravou um disco de sonoridades bem parecidas com o também aclamado Raphael Rabello, chamado Dois Irmãos (1992). Nele há outra versão para Um Chorinho Em Aldeia. É interessante conferir as diferenças e semelhanças entre o toque dos violões e a harmonia que Moura tece em volta deles.

Logo abaixo você pode conferir uma entrevista dada pelo violonista sobre a concepção do álbum, a relação com Paulo Moura. e seus projetos futuros. Em seguida assista um trecho do programa Ensaio, gravado em 2004, que contêm La Paloma, Simplicidade e um pouco da voz de Moura.


Um comentário:

Felipe Menoncin disse...

Já falei que você escreve muito bem?
Vou lendo as palavras e compartilhando o seu sentimento, mesmo nunca tendo escutado o som de Paulo Moura até chegar na base da postagem.