O ciclo de lançamentos de álbuns atualmente vêm se invertendo: ao invés de distribuir o trabalho e depois fazer a turnê, Yamandu Costa e Hamilton de Holanda primeiro amadureceram o repertório durante os shows para depois registrá-lo. O resultado, que beira a perfeição, se encontra em Luz da Aurora, gravado em 18, 19 e 20 de janeiro de 2008 no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.
Apesar do espetáculo de ontem a noite, dia 10 de abril, ter dois anos de distância desde o fim de semana que foi gravado, a perfomance só acrescentou beleza àqueles que já conheciam as músicas. É notório que qualquer apresentação ao vivo é mais empolgante que o som nos autofalantes de casa, mas o entusiasmo e os improvisos fizeram um novo show a parte para os fãs e os novos ouvintes.
Como a própria dupla declara e evidencia, a parceria na amizade é a semente de tamanho entrosamento e felicidade transmitidas nas composições. Ao dividirem os créditos, ora solo ora em dupla, o conceito musical torna-se totalmente pessoal, o que gera mais autonomia na linguagem de ambos. A única não composta por eles é Escorregando, de Ernesto Nazareth, como bônus depois de tanta introspecção
No show deste sábado, porém, Radamés Gnatalli foi o escolhido para abrir a performance. O Quarto Movimento, dedicado a Pixinguinha, da Suíte Retratos esparramou técnica e virtuosismo tanto nos acordes inóspitos quanto nos solos relembrados do mestre do choro brasileiro. Com o ótimo equilíbrio entre a estridência do bandolim e o grave encorpado do violão, a premissa era de muito espaço para todas as idéias que surgissem, o que não demorou a acontecer.
Logo em seguida, Samba do Véio reforça o lado chorão (apelido aos bons intérpretes do choro) de Hamilton, fortemente enraizado no estilo. Yamandu não desaponta e oferece um braço forte como harmonizador. Essa música foi concebida em homenagem ao lendário cavaquinista Six, um dos membros do famoso Clube de Choro de Brasília, que ambos instrumentistas conheceram e tocaram juntos.
Chamamé, presente no primeiro álbum do violonista, foi revisitada e contemplada com novo arranjo para a dupla. Solos, passagens ágeis e muito espaço para improvisação dão uma sobrevida à melodia já conhecida dos fãs, uma mudança criativa de andamentos sucessivos perfeita para ambos se refestelarem. Ao cabo de 9 minutos, Hamilton de Holanda pega o microfone e pergunta à platéia gaúcha: "Então, passei no teste do chamamé?" O público confirma numa vigorosa salma de palmas e risos satisfeitos.
A primeira valsa da noite é Meiga, outra composição de Yamandu que, infelizmente, não contou a origem dela. Esclarecida durante o show do álbum Tokyo Session em 2008 no Salão de Atos da UFRGS, Yamandu revelou que estava em turnê pela Espanha quando, após uma apresentação, foi ao bar mais próximo se divertir com os companheiros de show. Ao avistar uma bela mulher, começou a cortejá-la, tentando de todas a maneiras uma maior aproximação, ao passo que a moça se mostrava fechada. Lhe contou que era brasileiro: nada; que era músico: nada. Então, numa última cartada, pegou o violão, improvisou uma melodia e disse que lhe daria o nome Meiga, o nome dela. Mesmo assim, ela não se convenceu e Yamandu ficou sem a mulher, mas com uma música nova e uma boa história pra contar.
Cartaz original da gravação ao vivo
Ao visitarmos o trabalho de Hamilton, logo nos deparamos com um som rasgante e bastante conciso. Através de 01 Byte, 10 Cordas, sua música mais conhecida, o público ficou pasmo com a desenvoltura do bandolinista já na introdução. Logo mais, a evolução da mesma abriu outro vulcão de idéias semelhante ao de Chamamé, com improvisos surpreedentes e vários acordes cheios. Sem dúvida, foi o ponto alto, se é que se pode voar mais acima do que já haviam feito.
Como um bônus adiantado, Conversa de Botequim veio tão rápida e breve que mau durou dois minutos. Quando parecia que ia evoluir, acabou, o que não a desmerece, mas foi má colocada no meio do setlist, na minha opinião. Samba do Rapha, em homenagem ao grande Raphael Rabello, mostrou a compatibilidade entre a musicalidade de ambos. Mesmo sem grandes saltos, a melodia bem ensaiada recorda a disciplina e qualidade intrínsecas ao trabalho de Rabello, morto em 1995. O seu legado o precede a todos os músicos depois dele com reverência, sejam de alunos de cordas ou não, algo visível e elogiada por ambos, Yamandu e Hamilton.
Voltando aos climas calmos e contemplativos, Flor da Vida e Luz da Aurora acendem o lado mais amoroso e saudosista em todos os presentes. De cabeças baixas e movimentos leves, os artistas acham ternura em cada nota, bebem suavidade e carinho sem desembaraço diante do público que também se fragiliza. Luz da Aurora, que dá nome ao disco, é uma respeitosa saudação às avós dos músicos, por coincidencia, ambas chamadas Aurora. Yamandu já havia feito outra menção a ela num virtuose tema como o mesmo título, mas que compartilhava pouca doçura em comparação com a parceria de Hamilton. Comentando sobre ela, depois de tocá-la, Yamandu disse que sua avó já não pode mais ouvir, num tom mais divertido, mas que mesmo assim ela gostaria do resultado.
Ao anunciar a saideira, adiantar que os exemplares do disco estarão postos a venda no hall de entrada e já os classifica como 'coisa rara', dado a boa vendagem do material até o momento, Shiawase fechou o espetáculo. Ao contar que a compôs no Japão e a tradução do título para 'alegria' em japonês, Yamandu arrancou boas risadas ao lembrar os japoneses cantando pequenas canções folclóricas do país. Como todo show, após saírem do palco, o publico vibrou por um bis até ser atendido. Sentados novamente, improvisos sobre uma introdução desconhecida fisgaram a atenção. Quando o primeiro compasso de Adios Nonino saiu, o teatro veio abaixo com aplausos que logo silenciaram para melhor escutarem a adaptação do tango de Astor Piazzolla. A comoção pelo número se deu por outras perfomances da mesma executadas em Brasília e São Paulo, muito elogiadas e que fizeram sucesso no Youtube. Enfim, o palco e os ouvidos brilharam com tamanha imaginação que o violão e o bandolim extraíram da melodia (aparentemente) simples, porém, com variações infinitas.
Incrível também, não se deve esquecer, foi o jogo de luzes que encheu os olhos da platéia. Canhões de azul, branco e vermelho (como os filmes de Kieslowski) deram uma elegância, um toque sofisticado e vários relances interessantes dos intrumentos que só melhoraram o show.
Claro, nem tudo que está no álbum esteve no show. Obras como Cochichado, Estações e Escorregando ficaram de fora, mas em compensação deram espaço à versões inéditas para Radamés, Noel Rosa e Piazzolla. Quem sabe hoje, domingo (11/04) elas não entrem no setlist? Yamandu e Hamilton se apresentam hoje novamente no mesmo teatro, porém às 19h.
A seguir, você pode ver e escutar a versão de Samba do Véio, gravada logo após uma entrevista concedida ao site do jornal O Estado de São Paulo, que você confere logo abaixo.




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