Se o assunto é jazz, qualquer pessoa consegue dizer quem é Miles Davis ou John Coltrane, pelo menos. Se perguntados, quase todos já ouviram falar de Billie Holiday ou Louis Armstrong. Porém, essa distinção 'clássica' do que é o verdadeiro jazz caiu por terra há muito tempo. Músicos agregaram vertentes e inspirações de todos os lugares possíveis (Dizzy Gillespie e a música cubana, por exemplo) e o ritmo está muito rico, mas também quase impossível de identificá-lo plenamente. O próprio Tim Maia, quando não conseguia classificar algo, tinha a famosa frase "Isso aqui tá o maior jazz!".
Foi com esse conceito mundial-musical que consegui compreender o álbum
Ida E Volta. Em 2007, o violonista Yamandu Costa saiu da categoria de música brasileira e entrou no mercado global ao gravar com o violinista Nicolas Krassik e o contrabaixista Guto Wirtti um álbum em Bruxelas. Pra início de conversa, o formato do trio já sugere maior versatilidade: violão, violino e contrabaixo possuem timbres bastante diferentes, o que já abre muitas portas. O fato de Krassik ser um cidadão francês radicado no Rio de Janeiro e Yamandu ter tocado nos cinco continentes traz uma maior experiência ao grupo, também composto pelo gaúcho Wirtti, acostumado aos palcos.
Tudo começa com
Temporal, composição de Yamandu e Krassik. Longe de ser a mais tempestiva do álbum, ela apresenta o nível de simplicidade e liquidez dos arranjos que estão por vir, o que não a torna somente uma alegoria. Não,
Temporal joga com os possíveis contrapontos entre violão e violino, algo que sugere um som audacioso, uma combinação bastante pessoal entre o modo de tocar de cada artista. Logo depois,
O Sapo e O Grilo, parceria entre Wirtti e as 7 cordas, faz o mesmo que sua antecessora, porém num tom mais humorístico: penso que o sapo é o gigante contrabaixo, o grilo o modesto violão.
Na faixa 3, que dá nome ao disco, a união dos três instrumentos fica perfeita. Todos atacam com uma força e energia que dá a chance inicial aos três trabalharem juntos adiante.
Ida E Volta é uma metáfora sobre as transformações que a musicalidade da América Latina, com seus chamamés e zambas, passa ao entrar em contato com as influências européias tanto da valsa quanto do flamenco. A perspectiva que se forma é sempre mista, onde cada instrumento expressa sua origem, mas ousa no toque de outra cultura. Por exemplo, o violão, que simbolizaria a música latino-americana, mais forte, se mostra suave e acompanhante em certas partes, ao mesmo tempo que o violino assume uma agressividade nos solos que não lhe é atribuída na música clássica. O contrabaixo, apesar de seu tamanho sonoro, não se limita ao papel de coadjuvante e lança graves que surpreendem diante do virtuosismo dos colegas de cordas. A fusão destes elementos traz algo original ao trio, uma potência, uma união de idéias bastante frutífera.
Krassik (violino), Yamandu (violão) e Wirtti (contrabaixo)
Em contraponto ao resultado do trio, Yamandu não deixou de explorar seu material solo. Quando
Cebolão surge, logo percebemos um sotaque rústico, algo de combativo já transparece na cadência do músico. Notas fortes e um tanto abstratas abrem com elasticidade as 'brincadeiras' comuns ao violão livre do violonista. Quando a melodia surge, é evidente a influência do nordeste brasileiro e sua animação, sua criatividade em criar com o pouco disponivel. A comparação com o povo nordestino é revelada também na sofreguidão de partes arrastadas que, apesar de leves, têm o seu significado maior. Yamandu Costa não se esquece disso e lembra da sobrevivência inerente àquele que precisa continuar firme, o otimismo volta e bate mais rápido do que antes, com vontade. O nome da composição vêm da afinação Cebolão para viola, muito utilizada em todas as partes do Brasil. Para entender mais sobre ela,
clique aqui.
Uma surpresa incrível acontece logo em seguida. Uma choro lento de Dilermando Reis é tocado com tanta calma e paciência que quase duvido serem os dedos de Yamandu que a tocam.
Se Ela Perguntar é praticamente uma valsa brasileira com poucas variações e uma paz romântica contida que chega a ser translúcida. O surpreendente aqui é a ausência dos socos e ritmos acelerados com que Yamandu fez seu som característico. Várias vezes convidado a gravar músicas clássicas, ele sempre as recusou gentilmente ao alegar que seu compromisso é com a popular. Outras tantas vezes xingado pelo seu excesso de virtuosismo, agora ele prova que pode tocar como um concertista, um violonista clássico sem qualquer embaraço. De fato, esta música é uma resposta à todos que duvidaram que seu talento pudesse ser controlado.
Claro, depois de alguma reflexão, os três amigos voltam a extravazar. Batendo com vontade e sabendo até onde ir,
Missionerita é uma homenagem ao tradicionalismo gaúcho, terra de Costa e Wirtti. A mistura da melodia simples e imaginação abre o carrossel que a percussão oferece. Os batuques do baixo acústico com violino ao fundo lembram a multifuncionalidade que não só as cordas oferecem, mas também suas caixas acústicas.
Voltando ao solo work com
Jangada, de Maurício Carrilho, Yamandu brilha com ventilação, ou seja, se projeta com acordes leves sem abandonar um virtuosismo normal, nada sobre-humano, como declara a última música do álbum, a releitura de
Sampa. Figurinha marcada nos seus shows por quase 4 anos, Yamandu produziu algo completamente novo a partir do arranjo de Caetano Veloso. Com exceção da entrada, refrão e introdução ao final, o resto é todo improviso, recheado de passagens livres, com meios e fins no melhor exemplo que o jazz poderia inspirar. É neste caso que Yamandu começa o
scat com mais afinco e concentração. Para aqueles que não estão familiarizados,
scat é uma técnica que consiste em imitar notas musicais com a voz, porém sem produzir palavras. Ele faz algumas tentativas mais produtivas do que no registro de
Sampa do álbum Yamandu Costa Ao Vivo, de 2003, em sintonia com seu lado mais consciente do som refinado que o violão produz. Você pode ouvir um exemplo desta técnica
aqui.
Krassik e Yamandu
O som com toques nordestinos tem um exemplo mais maduro e fiel com
Bonitinha, penúltima composição do trabalho. Com mais melodia, mais agilidade, porém menos feeling social apresentam uma técnica mais próxima de experimentação do instrumento, um estudo maior sobre o ritmo e seus sons do que uma idéia-guia.
A partir daqui, o conjunto de dedos do trio mostra o filé mignon da produção em questão. Em
Xodó da Baiana, a ginga brasileira e o balanço do choro trazem sorrisos já na harmonia e pequenas notas. A linha melódica vai de violão pra violinio sem marcação muito sólida, o contrabaixo salpica toques acima deles enquanto nada fica muito certo se foi ensaiado. O conceito de improvisação sem prévia confirmaçao funciona muito bem e transforma
Xodó... na principal criação do álbum. Como que para quebrar a vibração,
Petit Tristesse traz uma certa melancolia à atmosfera. Composta novamente por Krassik e Yamandu, a 'pequena tristeza' é uma aproximação elegante do folclore francês de baladas. Krassik, violinista apaixonado pelo choro, mas arraigado às raízes, tece uma canção tamanho é seu fraseado. Ao sugerir quase uma voz humana ao produto final, Yamandu fica mais pra acompanhante que solista, sua função favorita mesmo em grupos.
Wirtti e Yamandu
Dentre todos estas músicas, todas tão diferentes entre si, a contagiante
Encerdando alegra o ambiente como um festa inteira. Com solos breves e expansivos, a conexão entre agilidade e harmonia é essencial para a fórmula funcionar com perfeição.
Após escutar o que
Ida E Volta tem a oferecer, é esperado que se tenha bastante musicalidade na cabeça, uma vontade maior ainda de escutá-lo novamente e descobrir mais detalhadamente cada acorde. Geralmente a produção de álbuns instrumentais almeja ser mais expansiva em seu desenvolvimento e agregar diferentes valores ao todo resultante. Com Yamandu Costa, Nikolas Krassik e Guto Wirtti traz um novo nível no padrão de quão influenciável o som pode se tornar. No começo deste post falei no âmbito global que o álbum pode ser classificado. Pois bem, idéias que convergem desde o nordeste até a França, da música clássica ao puro improviso são o combustível para que a audição seja o mais universal possível e não somente ofereça elementos conhecidos, mas ofertar um conceito musical novo e fresco, sempre.
Músicas:
Temporal
O Sapo e o Grilo
Ida e Volta
Cebolão
Se Ela Perguntar
Missionerita
Jangedeiro
Xodó da Baiana
Petite Tristesse
Encerdando
Bonitinha
Sampa
Você pode ouvir o álbum na íntegra através da Rádio UOL neste
link.